Tenho apenas um pedido: não espere conselhos em minhas crônicas. Se mal sei de mim, tão tonto e pouco que sou, como poderia aconselhar? Luto contra meus demônios todos para não perder o delicado essencial. Para não me extraviar ainda mais por aí e desacreditar. Cada dia é mesmo um dia roubado da morte?
Desconheço. Mas guardo minhas escolhas. E reconheço que existir não é lógico. Repito-me: se as linhas tortas são o mundo, como então aconselhar alguém? Veja-se (medite-se!) o caso exemplar de Sadam; não o Hussein das misérias iraquianas, mas o da 15 de Novembro, entre a Voluntários e a Cassiano, de nossos passos cotidianos.
Em nome da sinceridade, abro parêntese antes de começar a contar a história central deste texto e confesso: escrevo com o peito apertado, como se pressentisse um final que vai me arrastar a cara na lama, chutar-me a boca do estômago e me fazer entender meu verdadeiro tamanho no mundo: escrevo como se estivesse diante do espelho.
Sujo e pobre, o maltrapilho Sadam costumava passar manhãs e tardes inteiras sentado ao Sol em parte do pequeno espaço de calçada entre o Diário Popular e o Café.com. Imperturbável, ele parava ali, invariavelmente, dia após dia. Às vezes pedia café e pão a quem passava. Às vezes, como uma criança, queria Coca-cola.
Quando o inverno chegava alguém sempre lhe socorria com alguma jaqueta ou cobertor. Até mesmo um poncho de lã vi Sadam vestir. Mas tudo nele era desapego. Livrava-se das coisas no exato instante em que terminava de usá-las. Sim, era o justo: as coisas não lhe usavam. E o mais incrível: ninguém ralhava com ele por ter jogado fora tudo o que ganhara. Sadam era o homem da loucura de cumprir em si o certo de acreditar que nos basta a vida para ser feliz? Desconverso. O fato é que de repente - e sem se saber direito o porquê - com o passar do tempo todos na Redação gostávamos demais do gordo, barbudo e fedorento Sadam. Talvez fosse pelo doce do olhar, quem sabe, o gosto.
Imagine o tamanho do susto quando certo dia só se sentiu dele a muda ausência sentada próxima ao Jornal. O homem apelidado de Sadam pela simples semelhança física com o ex-ditador iraquiano tinha sumido. Chegou-se a cogitar o pior. Chegou-se a pensar mal: era ingrato? Não tinha casa. Não tinha família. Por onde andaria? Descobriu-se depois que - coisa nenhuma! - não havia morrido. Fora internado, "apenas". Caso de loucura? Sim, alguns disseram. Caso de santidade? Sim, outros retrucaram.
Descansamos, enfim; ao menos ele ainda vivia.
Sol a Leste. Sol ao Sul ou ao Norte. Sol a Oeste. Sol a Sol. E Sadam, de súbito, novamente ali sentado quase à porta do Jornal. Ainda não sei ao certo - e talvez nunca saberei - que horas eram quando saí distraído da Redação para a rua e aquele homem sujo e santo me ofereceu pão. Sim, em toda a sua miséria, como se fosse meu pai, Sadam me ofereceu o pão que comia. "Mas pão para mim é Deus!" Estremeci. Tive medo. Mastiguei meus nojos. Recusei.
Vou ser perdoado?
Nunca mais vi Sadam. E temo que nunca mais seja visto por ele como naquele dia. Resta-me agora apenas uma sempre-e-insaciável-pergunta: alguém tem pão?
(*) Título, como tudo, absurdamente gratuito. Ou não.