quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

10 de dezembro de 1920 (*)

Tenho apenas um pedido: não espere conselhos em minhas crônicas. Se mal sei de mim, tão tonto e pouco que sou, como poderia aconselhar? Luto contra meus demônios todos para não perder o delicado essencial. Para não me extraviar ainda mais por aí e desacreditar. Cada dia é mesmo um dia roubado da morte?

Desconheço. Mas guardo minhas escolhas. E reconheço que existir não é lógico. Repito-me: se as linhas tortas são o mundo, como então aconselhar alguém? Veja-se (medite-se!) o caso exemplar de Sadam; não o Hussein das misérias iraquianas, mas o da 15 de Novembro, entre a Voluntários e a Cassiano, de nossos passos cotidianos.

Em nome da sinceridade, abro parêntese antes de começar a contar a história central deste texto e confesso: escrevo com o peito apertado, como se pressentisse um final que vai me arrastar a cara na lama, chutar-me a boca do estômago e me fazer entender meu verdadeiro tamanho no mundo: escrevo como se estivesse diante do espelho.

Sujo e pobre, o maltrapilho Sadam costumava passar manhãs e tardes inteiras sentado ao Sol em parte do pequeno espaço de calçada entre o Diário Popular e o Café.com. Imperturbável, ele parava ali, invariavelmente, dia após dia. Às vezes pedia café e pão a quem passava. Às vezes, como uma criança, queria Coca-cola.

Quando o inverno chegava alguém sempre lhe socorria com alguma jaqueta ou cobertor. Até mesmo um poncho de lã vi Sadam vestir. Mas tudo nele era desapego. Livrava-se das coisas no exato instante em que terminava de usá-las. Sim, era o justo: as coisas não lhe usavam. E o mais incrível: ninguém ralhava com ele por ter jogado fora tudo o que ganhara. Sadam era o homem da loucura de cumprir em si o certo de acreditar que nos basta a vida para ser feliz? Desconverso. O fato é que de repente - e sem se saber direito o porquê - com o passar do tempo todos na Redação gostávamos demais do gordo, barbudo e fedorento Sadam. Talvez fosse pelo doce do olhar, quem sabe, o gosto.

Imagine o tamanho do susto quando certo dia só se sentiu dele a muda ausência sentada próxima ao Jornal. O homem apelidado de Sadam pela simples semelhança física com o ex-ditador iraquiano tinha sumido. Chegou-se a cogitar o pior. Chegou-se a pensar mal: era ingrato? Não tinha casa. Não tinha família. Por onde andaria? Descobriu-se depois que - coisa nenhuma! - não havia morrido. Fora internado, "apenas". Caso de loucura? Sim, alguns disseram. Caso de santidade? Sim, outros retrucaram.

Descansamos, enfim; ao menos ele ainda vivia.

Sol a Leste. Sol ao Sul ou ao Norte. Sol a Oeste. Sol a Sol. E Sadam, de súbito, novamente ali sentado quase à porta do Jornal. Ainda não sei ao certo - e talvez nunca saberei - que horas eram quando saí distraído da Redação para a rua e aquele homem sujo e santo me ofereceu pão. Sim, em toda a sua miséria, como se fosse meu pai, Sadam me ofereceu o pão que comia. "Mas pão para mim é Deus!" Estremeci. Tive medo. Mastiguei meus nojos. Recusei.

Vou ser perdoado?

Nunca mais vi Sadam. E temo que nunca mais seja visto por ele como naquele dia. Resta-me agora apenas uma sempre-e-insaciável-pergunta: alguém tem pão?

(*) Título, como tudo, absurdamente gratuito. Ou não.

10 de setembro de 1930 (*)

Escrevo sem urgência este relato frio. Por que teria pressa para falar de assuntos tão cotidianos? O que vou contar são apenas fatos. E fatos sem nenhum glamour: o pedreiro sentado no meio-fio a desenrolar o pano de prato que envolve a marmita, o pai que leva o filho para a escola na garupa da bicicleta e o homem cego diante do espelho. Haverá quem encontre alguma relação entre eles. De minha parte, afianço: fatos seguidos de fatos. Histórias sem fecho. Nada mais.

***

De costas para o edifício que ajudava a construir na Alberto Rosa, ele comia o almoço mal aquecido no pequeno fogareiro da obra com a tranqüilidade de quem sabe e aceita exatamente para onde e como vai. Mas quando? A pergunta era a única capaz de inquietá-lo. Não queria partir antes de ver o primeiro neto nascer. Precisava conhecê-lo. Era sangue de seu sangue em gestação. E, além do mais, herdaria seu nome. Teria covinhas nas bochechas como o vô? Teria a mania de limpar a boca na toalha de mesa como o vô? Teria tremores nas mãos como o vô? Em um ponto não haveria a menor possibilidade de dúvida: a criança cresceria apaixonada por rios e ruas, como o vô. Mas de que maneira isso se daria se não iriam conviver por muito tempo? Como não tenho respostas, multiplico perguntas: quanta coisa se perde nesta vida como se perdeu o que Pedro Domani pensava na última quarta-feira ali mastigando, misturando feijão com farofa e nacos de galinha com molho? Quanta coisa se perde nesta vida como se perdeu Pedro Domani?

***

Mas também existe felicidade neste vale: sorrisos encontrados em horas de descuido. Num zás o guri estava pronto. Quem o visse assim tão disposto poderia pensar que adorava a escola. Divulgo, por horror à mentira: Joãozito gostava mesmo é da travessia. Era só o pai chamar para subir na bicicleta e ele estava lá, em seu posto, feliz como se todo o dia depois do almoço fosse noite de Natal, família reunida e brinquedo novo. Imaginava mil aventuras na garupa enquanto Silveira pedalava. Cada vez que cruzavam a Neto com a Santa Cruz, depois de vencerem a terrível subida, o guri imaginava-se em vôo, olhos fechados, rumo ao sempre - via o mundo de cima: tão lindas, tão pequenas e tão iguais lá do alto as pessoas todas. Certo dia, sem aviso, uma dúvida o assalta. "Pai, Deus tá lá no alto, né!?", perguntou, ao descer em frente à escola. "Sim, Joãozito, Deus vê tudo lá de cima". "Entendi então", respondeu o menino. E mais não disse. Antes de encontrar-se com os coleguinhas, abraçou o pai, sorriu e se despediu com o desejo sincero de ver tudo lá de cima. Para sempre.

***

Diante do espelho o cego tateia o reflexo que não mais vê e sequer pressente. Há tempos esquecera-se do próprio rosto. No apartamento da Félix da Cunha, em frente à Coronel Pedro Osório, o famigerado homem tenta agora em vão lutar contra os versos que começam a lhe invadir as veias, arrebentar-lhe as artérias, moer-lhe os ossos, sufocar-lhe os pulmões e levar-lhe à falência os rins. Luta até não poder mais. Para não morrer cego e engasgado, vomita a visão do poema. Não sem dor, transcrevo-a, com a omissão do título.

Aqui me tenho

como não me conheço

  nem me quis

sem começo

nem fim

  aqui me tenho

  sem mim

nada lembro

nem sei

à luz presente

sou apenas um bicho

  transparente

(*) Título fundamental. E, como tudo, gratuito. Quod erat demonstrandum.