Escrevo sem urgência este relato frio. Por que teria pressa para falar de assuntos tão cotidianos? O que vou contar são apenas fatos. E fatos sem nenhum glamour: o pedreiro sentado no meio-fio a desenrolar o pano de prato que envolve a marmita, o pai que leva o filho para a escola na garupa da bicicleta e o homem cego diante do espelho. Haverá quem encontre alguma relação entre eles. De minha parte, afianço: fatos seguidos de fatos. Histórias sem fecho. Nada mais.
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De costas para o edifício que ajudava a construir na Alberto Rosa, ele comia o almoço mal aquecido no pequeno fogareiro da obra com a tranqüilidade de quem sabe e aceita exatamente para onde e como vai. Mas quando? A pergunta era a única capaz de inquietá-lo. Não queria partir antes de ver o primeiro neto nascer. Precisava conhecê-lo. Era sangue de seu sangue em gestação. E, além do mais, herdaria seu nome. Teria covinhas nas bochechas como o vô? Teria a mania de limpar a boca na toalha de mesa como o vô? Teria tremores nas mãos como o vô? Em um ponto não haveria a menor possibilidade de dúvida: a criança cresceria apaixonada por rios e ruas, como o vô. Mas de que maneira isso se daria se não iriam conviver por muito tempo? Como não tenho respostas, multiplico perguntas: quanta coisa se perde nesta vida como se perdeu o que Pedro Domani pensava na última quarta-feira ali mastigando, misturando feijão com farofa e nacos de galinha com molho? Quanta coisa se perde nesta vida como se perdeu Pedro Domani?
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Mas também existe felicidade neste vale: sorrisos encontrados em horas de descuido. Num zás o guri estava pronto. Quem o visse assim tão disposto poderia pensar que adorava a escola. Divulgo, por horror à mentira: Joãozito gostava mesmo é da travessia. Era só o pai chamar para subir na bicicleta e ele estava lá, em seu posto, feliz como se todo o dia depois do almoço fosse noite de Natal, família reunida e brinquedo novo. Imaginava mil aventuras na garupa enquanto Silveira pedalava. Cada vez que cruzavam a Neto com a Santa Cruz, depois de vencerem a terrível subida, o guri imaginava-se em vôo, olhos fechados, rumo ao sempre - via o mundo de cima: tão lindas, tão pequenas e tão iguais lá do alto as pessoas todas. Certo dia, sem aviso, uma dúvida o assalta. "Pai, Deus tá lá no alto, né!?", perguntou, ao descer em frente à escola. "Sim, Joãozito, Deus vê tudo lá de cima". "Entendi então", respondeu o menino. E mais não disse. Antes de encontrar-se com os coleguinhas, abraçou o pai, sorriu e se despediu com o desejo sincero de ver tudo lá de cima. Para sempre.
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Diante do espelho o cego tateia o reflexo que não mais vê e sequer pressente. Há tempos esquecera-se do próprio rosto. No apartamento da Félix da Cunha, em frente à Coronel Pedro Osório, o famigerado homem tenta agora em vão lutar contra os versos que começam a lhe invadir as veias, arrebentar-lhe as artérias, moer-lhe os ossos, sufocar-lhe os pulmões e levar-lhe à falência os rins. Luta até não poder mais. Para não morrer cego e engasgado, vomita a visão do poema. Não sem dor, transcrevo-a, com a omissão do título.
Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente
(*) Título fundamental. E, como tudo, gratuito. Quod erat demonstrandum.
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