sexta-feira, 28 de novembro de 2008

27 de junho de 1908

Pablo Rodrigues
pablo@diariopopular.com.br

Confesso: estou cansado - muito cansado, diga-se de passagem - de gente que fala como se conhecesse exatamente o funcionamento dos "mecanismos espirituais". Gente que age como se sempre soubesse - tintim por tintim - a causa mais profunda dos acontecimentos "em outro plano". Poupem-me, por favor, desses infelizes. E me deixem com o mistério. Desses infelizes, por favor, me poupem. E me deixem com a dúvida. Às 13h, logo depois de almoçar, Deus existia em mim. Às 13h12min, quando saí para a rua, na boca do Café Aquário a miséria do menino fazia coro à voz de Nietzsche. Cheguei a cogitar, porque existo, que o Evangelho teria mesmo morrido na cruz. Mas voltei a crer no instante seguinte porque afinal de contas a cruz continua aí. E em minhas costas ela pesa justamente o que eu posso suportar. E talvez por isso eu não a suporte. O relógio mal bateu 14h e eu já tinha me esquecido de Deus, da miséria do menino, da cruz, de mim. Havia-me afogado em burocracias. Ora, me dirás, certo perdeste o senso! Há, por acaso, burocracias no jornalismo? E eu te direi, leitor, muitas. Faltam-me palavras para dizer quantas. Palavras faltam, aliás, no próprio jornalismo. Precisa-se urgentemente sair em busca de um novo léxico (nem ósculo, nem amplexo). Precisa-se sair em busca de Deus, mais íntimo do que a própria intimidade, segundo Agostinho de Hipona, o ladrão de pêras mais importante da história da humanidade. Eu já roubei pêras. Minha mãe nunca soube. Nem o padre da minha primeira confissão. Sim, milhares de explicações surgirão para meu delito. Os sabedores (chatos, chatíssimos) dos motivos além-corpo dirão que algum rescaldo de alguma outra vida me impulsionou à má ação. Os psicanalistas por certo irão encontrar alguma motivação fálica em meu proceder. Cada um guarde o que pensa para si. Como infrator, digo: eu era criança e apenas quis comê-las. Sim, às vezes a verdade da vida irrompe é da simplicidade. Pensar demais atrapalha tudo. Talvez seja melhor mesmo não pensar em nada: nirvanear-se. Mas não pensar em nada é também não pensar no outro. Aqui volta (e revolta) a história do menino pobre e demasiado humano à porta do Aquário. Quem pensará nele se todos os que podemos ajudá-lo nirvanearmo-nos? Sei, o mundo precisa de mãos. Há tanto suicídio por falta de abraço. Menos Prozac, mais abraços! Menos Prozac, mais literatura! Palavras, apenas. A busca pela vida em seu supra-senso, ilógica e vivíssima como as observações das crianças, bem expressas no papel por Pedro Bloch. Grave-se, por motivos absurdamente gratuitos, três bons exemplos, numerados também por motivos absurdamente gratuitos.
1) Diante de um túnel, o menino cisma e pergunta ao pai: "Por que será que sempre constroem um morro em cima dos túneis?"
2) Diante de uma casa em demolição, o menino observa: "Olha, pai! Estão fazendo um terreno!"
3) O menino explicava ao pai a morte do bichinho: "O gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato."
Outro bom exemplo da fantástica ilógica infantil - e mais não se fale sobre o assunto - aparece em um dos quatro prefácios de Tutaméia, livro de contos de Guimarães Rosa. O trecho vai transcrito abaixo, numerado com uma data, por motivo, como tudo, absurdamente gratuito.
27 de junho de 1908. "Seo guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu!?"
Ademais, o que se pode dizer ou escrever?
Lhufas!

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A palavra em poesia (ou a crônica das perguntas)

Pablo Rodrigues
pablo@diariopopular.com.br

Eu preciso escrever como quem precisa de pão. Tenho fome, o desenorme desejo-de. E vejo um nublar-nublado imenso em minha frente: incertezas, coisas gerais. O que faz de mim este que insiste? Quem me pintou palavra – pensou-me nome, vocou-me: Pablo - antes mesmo que eu pudesse pensar em palavrear? Antes que eu atendesse por este nome que me chamam? Por este nome que sussurro, como se me procurasse, nos becos mais desconhecidos de mim? Será que me encontro? Fora de mim, eu? Outrocêntrico?

Transito entre coisas – e quem sou eu? Passeio pelo piso – pisoteio. Queria saber dançar, eu acho – o sapateio. Mas aquilo que não sei me entusiasma, catequiza. Compro cordas, corto garfos, canto vacas, profanas, cornos, tetas – tudo em mi. Maior? Tudo é maior, mesmo os menores pormenores. Mudo o tom: silêncio, Hamlet morreu – virou resto. Tragédia, a vingança. Tantas coisas podres, tantas belezas. E essas palavras em desordem, em desatino, que me saem naturalmente, como se eu próprio fosse o mais dissociado dos homens – quem sabe? Quem me sabe? Eu não arrisco dizer-me. A não ser desse jeito, assim, labiríntico, distraído – e caótico: poema?

Eu busco o lado de dentro da palavra, o poço do silêncio, desconhecido: a palavra em solidão. Mergulho em cada letra: voais como antes? Aeioueio-me. Também eu, consoante em mim, em cada serifa, ou não-serifa, busco, ao fim, ao cabo, encontrar-me. Sem a palavra, como poderia dizer-me? Como poderia dizer-te todo o tanto que ainda queria?

Eu busco o interno do sentimento da palavra sem dor: os meus amores todos. Mas desconheço palavra que não doa. Significo? Coisas quais? Cais, "saudade de pedra". Cais, mas não sou mais, pedra. Cultivo o peito em festa, fogueira e pinhão. Garanto o direito ao sonho, em mim, ao beijo e à construção. Garanto, em mim, garanto.

Mas desde sempre, aliás, garantias não são eternas. Eterno é apenas este instante: o do encontro da escrita e da leitura fora do tempo. Tuas mãos no papel e teus olhos soltos em mil-e-uma decifrações. Onde se fabricam os poemas? Existem já mesmo antes de existir? Estão suspensos por aí como milagres à espera-de? Os poemas são as pedras? Em que parte do caminho? (Dedico-me a Beatriz, filha que ainda não tenho) Os poemas são as nuvens? Os poemas são os olhos? Os olhos são abismos?

Soubesse o que me espera… A poesia podre - no meio do lodo, talvez, o despertar de um lírio? A poesia distraída – no meio da dança, quem sabe, o tropeçar de um bêbado? Que me leiam com calma. Nada do que escrevo me foge. Nada do que escrevo me é estranho, estúrdio. Despejo-me – o silêncio da confissão: madrugada adentro, em alfabética desordem. Falo do que nem sei. Do que sou, procuro. Vontade minha maior é de misturar as palavras, bagunçar os acentos, despontuar: suspender a ortografia e a regência verbal em reticências, redundâncias, como se fossem como se estrelas-pássaros fossem, senhoras de desarranjadas constelações, vôos outros, infantis: Gaudí.